quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A SEDE


"...O relógio marca exatamente meia noite, eu adoro este número, esta hora, este momento tão misterioso da noite, cheio de lendas e contos, criados pelo folclore de vários povos desde tempos muito antigos. É o momento em que a sensibilidade está aflorada, em que todos acreditam no inacreditável, o momento em que a posição simétrica dos ponteiros do relógio anuncia que algo grande está para acontecer. Talvez seja a hora de se recolher, pois o feitiço acaba e a carruagem outrora enfeitada para uma festa da realeza volta a ser uma simples abóbora, ou talvez seja a hora de aparecer, de se esgueirar pelos bosques, ruas, becos, lugares escuros, à procura de mais uma refeição, se escondendo entre as árvores, abafando os passos para que a aproximação não chame a atenção da vítima. Eu particularmente abomino tal comportamento, acredito estar um passo à frente da maioria dos que convivo no dia-a-dia, um degrau acima de todos os que me cercam, e quando falo daqueles que ainda desfrutam de sua mortalidade, sei que estou certo. A despeito das décadas de existência
como vampiro, o que entre os meus, significa que ainda sou jovem, conservo uma bela aparência humana, e ao contrário do que dizem as estórias de seres como eu, aprecio a vaidade, me visto bem, e me olho frequentemente no espelho. Gosto de socializar, conhecer indivíduos, decifrá-los, ver o quanto posso ser convincente, persuasivo, ver quantas mentiras consigo dizer em uma única conversa, e entender o que a veracidade das minhas palavras causa aos que me relaciono. Neste momento estou sentado na janela de um pequeno flat no centro da cidade, olhando para uma de suas ruas mais movimentadas, com meu diário em mãos, escrevendo estas palavras. As pessoas vão e vem, o calor é tangível e a noite está muito bonita, cheia de vida, não consigo precisar em que dia estamos, pois há pelo menos duas semanas tenho dormido profundamente, e o faço por nenhum outro motivo a não ser a sensação de mudança, gosto de ler os jornais e perceber quanta coisa aconteceu sem que eu tivesse a chance de ter notado, e quando a frustração é grande, durmo por um tempo ainda maior, meses, às vezes um ano ou dois. Acabo de me olhar no espelho e minha aparência não está tão boa, com certeza ainda sinto sede, afinal foram muitos dias de sono, e somente o sangue quente correndo entre as veias trará de volta aquela imagem que tanto aprecio de mim mesmo, mas por agora, prefiro ignorar o que vejo. A sede do despertar é a pior que se pode sentir, a abstinência do sangue após certo tempo pode ser uma das mais dolorosas sensações, o que se agrava ainda mais se você permaneceu acordado durante todo o tempo, o que, por sorte, não é o meu caso. Estou sentindo o calor aumentar, a temperatura do meu corpo sobe rapidamente, minhas veias se dilatam e se contraem, ativas, o cérebro as diz para que se preparem para o fluxo descontrolado de sangue que ele pede neste momento. Pense num viciado em heroína, que toma sua dose diária, religiosamente, e então pára bruscamente, dormindo durante dias sem a sensação confortadora da droga. Como acordaria esta pessoa? Qual seria o tamanho da sua sede? É como me sinto agora, sedento. A única diferença é que, quando em minhas veias estiver correndo quantidade suficiente da substância da qual tenho necessidade, me sentirei mais forte como nunca antes em toda a minha existência. Eu durmo, me abstenho, sinto a sede, e depois a sacio. Sinto minhas mãos trêmulas agora ao escrever, há muito para saciar ainda esta noite, e sempre perco a noção do tempo quando estou escrevendo. Por vezes esperei o limiar entre o controle e o descontrole, para que pudesse captar as sensações até o último instante, e transcrevê-las em meu diário. A dor começa a se intensificar, e a visão fica turva, preciso beber, definitivamente. Na cama está o corpo da bela jovem de quem tirei até a última gota de vida, a primeira de muitas desta noite, e até mesmo seus belos olhos verdes começam a se apagar em meu olhar, preciso me retirar, preciso me alimentar. Da janela vem um vento cortante, que quase me leva, é a minha deixa, me colocarei a voar..."

Autor: Marcelo Vitoria
http://www.recantodasletras.com.br

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