sábado, 2 de setembro de 2023

A SOMBRA DO VAMPIRO: REIMAGINANDO O NOSFERATU DE MURNAU


POR FILIPE PEREIRA

Lançado no ano 2000, A Sombra do Vampiro é um filme pseudo biográfico, que narra a experiência da produção do clássico alemão Nosferatu de 1922, trazendo ao centro do picadeiro John Malkovich como Friedrich Wilhelm Murnau, o diretor que decidiu adaptar a história do vampiro de Bram Stoker, o Conde Drácula, além de Willem Dafoe como Max Schreck, o ator que daria vida ao monstro morto vivo.
Para isso, o diretor E. Elias Merhige resolve brincar logo no início, situando o espectador no mundo da arte alemã do início do século XX com cartelas semelhantes ao cinema mudo. As primeiras cenas são em preto e branco, referenciando o modo de fazer cinema da década de 1920.

Essa sequência só é quebrada ao mostrar Malkovich como o diretor do longa, conversando co o produtor Albin Grau (Udo Kier). Curiosamente a cor é introduzida para mostrar as dificuldades em filmar nos primórdios da linguagem cinematográfica, com a colarização servindo para quebrar uma visão inocente e lúdica de como se prepara a arte profissional, revelando assim o pragmatismo do trabalho como algo irremediavelmente real.


O roteiro de Steven Katz é bem inteligente e mostra os personagens que fariam os atores do longa um a um. A Greta Schröder, mocinha famosa pelo teatro alemão é mostrada como uma prima donna, uma mulher já estabelecida em sua arte, belíssima graças a interpretação de Catherine McCormack, sendo absolutamente difícil de lidar, dada sua fama pregressa.

Também é rapidamente mostrado que Schreck estudou em Moscou o método, com Constantin Stanislavski, o mesmo que anos depois, inspiraria uma série de grandes atores em seus épicos desempenhos, como Marlon Brando em O Poderoso Chefão e James Dean em Juventude Transviada.

Também é estabelecido que o ator fez parte da companhia de teatro de Max Reinhardt, que por sua vez, foi celeiro de grandes artistas da indústria cinematográfica alemã, Com Reinhardt, Schreck interpretou a produção Trommeln in der Nacht, que marcou a estreia de Bertolt Brecht.

A Sombra do Vampiro é sim uma biopic, mas é bem diferente das versões que miram premiações. Essa parece disposta a contar uma história de elementos macabros, fugindo da característica chapa branca comum aos seus pares de gênero. É portanto um filme de horror, e dos bons.

Ele acaba sendo também um filme sobre o método, graças a participação de seu protagonista, mesmo que ele só apareça com 19 minutos de exibição.

Dafoe aliás rouba a cena desde sua introdução, onde basicamente só aparecem suas características mãos, com as unhas alongadas. Schreck já entra em cena com a mesma caracterização do Conde Orlock, e sua excentricidade se torna um bom tempero para a obra. O roteiro que Katz assina é cuidadoso, e foge da possibilidade de ser expositivo.


Max é introduzido como indócil alguém de difícil trato, ao menos até o momento que liga a câmera. Quando o trabalho "de fato" começa, ele mergulha em concentração.

Da parte do elenco, Dafoe está ótimo, tanto que foi indicado ao óscar de melhor ator coadjuvante (mesmo sendo claramente o protagonista). Outro bom destaque é o Wolf de Ronan Vibert, que é a versão para Wolfgang Miller, o primeiro diretor de fotografia de Murnau para o filme. Ele acaba sendo uma das primeiras vítimas, e seu espanto é tão bem mostrado que certamente contamina o espectador.

Malkovich parece caricato em muitos pontos da atuação, mas é em seu papel que se equilibra a trama nonsense e irrealista que vai se desenrolando ao longo do filme. Sem sua participação a teoria de que Schreck era um vampiro não seria crível, e o desempenho do ator vai se tornando grandioso, com o passar do tempo.


Um aspecto técnico digno de nota é a música de Dan Jones, que ajuda a pontuar bem as construções narrativas que fogem da realidade tangível. Toda a busca pela real identidade de Schreck se passa no silêncio, especialmente quando ele não está em cena.

Quando ele aparece e reaparece, normalmente é conduzido um bom arranjo instrumental, que dá a nota do medo que o público deve sentir, e de fato, o horror se instaura, Até sequências clássicas de trívia, como a invenção da fraqueza dos vampiros ao sol é bem demonstrada nesta versão, muito por conta dessa criação de atmosfera.

A meia hora final narra uma luta soberba entre Murnau e Orlock. Schreck claramente encarna de vez seu personagem, e os momentos finais mostram o quanto ele se perdeu dentro dessa proposta.


Dafoe segue bem, convence no comentário metalinguístico e Malkovich melhora demais e alcança seu ápice no final, conseguindo se estabelecer como a face de Murnau, o homem soberano desse mundo onírico e cinematográfico.

O desfecho se torna então semelhante ao último ato de peça, teatral, repleto de significados e ainda deixa mais interrogações do que respostas. A Sombra do Vampiro termina poético, surrealista, resultando então em uma ode a Sétima Arte e ao Surrealismo Alemão.

Fonte: Cine Alerta

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