Drácula é um dos personagens literários mais metamorfoseados na passagem para outros suportes artísticos. Já passou pelo ciclo de horror da Universal, ganhou versão pop para os anos 2000, crossover com outros monstros clássicos, versão afroamericana e até viagem temporal para o ano 3000. Lido e reinterpretado em diversos formatos narrativos, em 2013, foi transformado numa luxuosa e atmosférica série de TV produzida pela NBC, tendo Jonathan Rhys Meyers como o protagonista, ator que entrega um desempenho fantástico: profundamente dramático e muito sensual, adequado para o clima proposta pela história que flerta com sexo, sangue, política e desejos pulsantes de maneira bastante erótica, sem escorregar em momento algum para os perigos da vulgaridade. Sim, até politicamente, pois os jogos sociais entre os homens de poder na versão de Londres apresentada pelo programa exalam um discurso falocêntrico, galgado na potencialidade de suas masculinidades exacerbadas, assim como nas personagens femininas que estão constantemente próximas da queda diante de seus desejos, induzidas e se entregar aos anseios sem pensar exatamente nas consequências dos atos dentro desta sociedade puritana.
Em sua obra ponto de partida, isto é, o romance de Bram Stoker, um dos destaques importantes para compreendermos a imagem de Drácula é a forma como os próprios personagens o descrevem. Mina, em determinado ponto, alega que o misterioso conde possuía um rosto que não demonstrava bondade, áspero, cruel, sensual e com grandes dentes brancos, ainda mais alvos diante do contraste com os lábios muito vermelhos. Já na série criada por Cole Haddon, showrunner que teve colaboração de Dan Knauf na elaboração da estrutura dramática da única temporada, o vampiro representado por Jonathan Rhys Meyers é puro charme, contemplado constantemente com pompa pela direção de fotografia de Ousama Rawi e Chris Seager e trajado pelos figurinos assertivos de Annie Symons, setores responsáveis por criar um homem elegante e sofisticado para circular pelos eventos de Londres em suas transformações, mudanças que dinamizaram a tal Era Vitoriana. O mote é básico, mas muito bem desenvolvido com as suas subtramas: Drácula chega dos Estados Unidos num disfarce, como Alexandre Grayson, um homem rico e poderoso, interessado em trazer as maravilhas da modernidade para os londrinos.
Por detrás de seu plano, no entanto, está uma vingança há tempos fermentada pelo ódio gerado diante do que lhe foi feito no passado. E é a sua trajetória cheia de obstáculos e desafios que acompanhamos durante as 10 unidades dramáticas da série, alinhadas nos tradicionais 43 minutos cada. Com dois episódios para cada diretor, Drácula foi comandada por Brian Kelly, Andy Goddard, Nick Murphy, Tim Fywell e Steve Hill, realizadores que assumiram os textos da equipe formada na sala de roteirista de Cole Haddon, tradutor intersemiótico da obra gótica de Bram Stoker, cheia de liberdades convenientes por aqui, para atualizar esse mito retomado constantemente na mídia. Depois de sua chegada, Grayson se deixa levar pelas dispersões em torno de Mina (Jessica De Gouw), noiva de Jonathan Harker (Oliver Jackson-Cohen), jovem que trabalhará para o Drácula disfarçado em busca de informações que ele sequer imagina se tratar. Lucy (Kate McGrath) é a melhor amiga de Mina, mulher com posturas liberais que cobiça algo complexo de conseguir: o amor de sua amiga, paixão que vai além da amizade. Essa é uma das principais subtramas do meio para o final, com o desenvolvimento de alguns conflitos bem tensos entre as personagens.
Renfield (Nonso Anozie) é praticamente o mordomo de Drácula, relação quase parecida com a de Alfred em Batman. Ele resolve os problemas de seu “mestre” e funciona como uma espécie de conselheiro e homem de sua grande confiança. Entre os destaques, temos Lady Jane (Victoria Smurfit), uma mulher igualmente poderosa, sensual, parte integrante da Ordem do Dragão, foco da vingança de Drácula. Caçadora de vampiros, ela deseja exterminar a raça de sugadores de sangue de Londres, mas enfrentará em Alexandre Grayson um desafio imenso, a ser revolvido constantemente na cama, em tórridas cenas de sexo e manipulação mútua. Quem também possui um diferencial aqui é Abraham Van Helsing (Thomas Kretschmann), cientista que desenvolve, entre tantas coisas, o soro para que Drácula possa caminhar em plena luz do dia pelas ruas de Londres, sem sofrer as consequências de sua estrutura não preparada para o sol. Van Helsing, mesmo contrário ao vampiro em diversos aspectos, também quer vingança contra a Ordem do Dragão, responsável por causar uma série de desgraças em seu passado traumático. Na série, ao flertar com a iluminação e eletricidade como alegoria para a modernidade, os personagens também discutem questões sobre petróleo, guerras territoriais e outros temas bastante pertinentes.
Drácula possui essas reflexões atualizadas para as plateias contemporâneas, além de trazer boas discussões sobre as questões imperialistas no desenvolvimento da série. Com identidade forjada como oriundo dos Estados Unidos, o vampiro atravessa as ruas da cidade e integra os eventos sociais contemplado pelo olhar que Peter Gay retrata no elucidativo O Cultivo do Ódio, isto é, a ojeriza ao “Outro” como forma de enaltecer a si próprio e aos anseios nacionalistas que fermentaram o ódio eclodido nos avassaladores conflitos bélicos que marcaram a primeira metade do século XX. Ao construir o ódio em relação ao que vem de fora, o estrangeiro, representação da degenerescência, esses fomentadores de discursos perpetuam o racismo e outras manifestações de preconceito. Na questão do imperialismo, o principal objeto de disputa é a terra. Aqui, na série, o vampiro disfarçado de lorde chega ao espaço territorial londrino com demonstrações de poder e audácia, algo que levanta suspeitas e promove o ódio dos invejosos e enfraquecidos diante de uma imagem tão imponente. A prepotência num misto de sensibilidade na relação com poucos, mixados na imagem do Alexandre Grayson construído por Jonathan Rhys Meyers, colabora com o fortalecimento do personagem na batalha diante do ódio alheio, alegórico ao estrangeiro.
Importante também as associações que a série faz com os vampiros e o sangue, algo que vai muito além do grafismo em torno da violência. Na época de publicação do romance de Bram Stoker, as pesquisas científicas avançavam na área medicinal e o sangue começou a ser melhor compreendido, em especial, pelas investigações de William Harvey e Richard Lower, expoentes das considerações sobre este “condutor da carga humana”, “responsável por interferir em comportamentos e propensões do corpo e da mente”. São informações que tive oportunidade de conhecer ao ler a dissertação Drácula, Um Vampiro Vitoriano, da pesquisadora Andrezza Rodrigues, defendida em 2008 num curso de História. Ela aponta que as questões sanguíneas permeiam a obra de maneira central, pois é a forma de contágio do vampiro, líquido que na época, assumiu papel importante nos debates sobre questões raciais e hereditárias. E também, a questão da degenerescência, tópico que sempre fundamentou a ideia de contato com o “outro”. Tanto no romance ponto de partida quanto nos diversos filmes e na série em questão, o sangue é a representação da união entre Drácula e a sua vítima, como ocorre na transformação de Lucy, numa alegoria que funciona como elemento estético e filosófico para o desenvolvimento da história.
Em suma, Drácula é uma série poderosa, cancelada em sua primeira temporada, material que consegue fechar o máximo de arcos possíveis, mas ainda deixou algumas pontas para abordagens futuras que não aconteceram. Cancelada pelos altos custos e problemas de bastidores, a série também amargou o seu período de lançamento, uma época de diminuição da qualidade na representação dos vampiros logo após as bobagens da saga Crepúsculo. Haja paciência, não é mesmo, caro leitor? Você conhece a série? O que achou? Minha proposta: sem segunda temporada mesmo, uma apenas bastava, talvez com mais dois ou três episódios para amarrar algumas pontas que não ficaram muito frouxas, mas teriam sido melhor aproveitadas se devidamente encerradas. Destaque para os efeitos visuais da equipe de Kent Johnson, excelentes, funcionais e sem utilização parcimoniosamente, sem ter se tornado uma muleta para a série se desenvolver. A maquiagem de Jon Henry Gordon também cumpre muito bem as suas funções, tal como a imersiva trilha sonora de Trevor Morris, envolvente, misteriosa e assustadora nos momentos de maior tensão, mas romântica quando se faz necessário largar as sombras de lado e deixar espaço para a entrada da luz, em especial, nas cenas de Alexandre Grayson e Mina.
Veredito: uma série belíssima! Merecia ser mais conhecida.
Drácula (Drácula, França – 2013-2014)
Criação: Cole Haddon (baseado no romance homônimo de Bram Stoker)
Direção: Andy Goddard, Brian Kelly, Nick Murphy, Steve Shill, Tim Fywell
Roteiro: Cole Haddon, Daniel Knauf, Harley Peyton, Tom Grieves, Rebecca Kirsch, Katie Lovejoy, Nicole Taylor
Elenco: Jonathan RhysMeyers, Jessica De Gouw, Thomas Kretschmann, Victoria Smurfit, Oliver Jackson-Cohen, NonsoAnozie, Katie McGrath, Ben Miles, Robert Bathurst
Duração: 43 min. por episódio (10 episódios no total)
Fonte: Plano Crítico
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